No segundo semestre de 2012, eu me deparei com uma situação
constrangedora. Em rápidas palavras, o resumo da história: um pai sustentava a
família com um ônibus e um dos filhos era o motorista. Em razão de um
desentendimento entre ambos, o filho inconformado decidiu ajuizar uma ação
trabalhista contra o pai. Reconheceu-se a relação empregatícia entre ambos,
sendo o genitor vencido juridicamente, por ocasião da sentença e condenado ao
pagamento das verbas decorrentes do contrato de trabalho. Como não houve
pagamento espontâneo, o Juiz determinou que o ônibus fosse penhorado, avaliado
e removido para o depósito judicial, no intuito de ser levado a leilão e a
dívida paga.
Particularmente, senti-me muito desconfortável diante daquilo tudo,
notadamente, porque sou um entusiasta e adepto da solução pacífica dos conflitos.
Para me resguardar, fui escoltado pela Polícia e, chegando ao local, a reação
era a esperada: o pai, abatido e decepcionado, não compreendia o porquê de
tamanha injustiça, mas não hesitou em entregar prontamente o
ônibus. Dias depois, ao chegar no trabalho, encontrei pai e filho sentados,
celebrando uma conciliação e ouvi do pai um ‘eu o perdoo e não tenho mágoa’.
Esse caso nunca me saiu da memória por uma série de razões, jurídicas ou
não. A finalidade aqui não é discutir o Direito, mas uma analogia teológica que
pode ser extraída do caso, ou, dito de outra forma, a complexa expectativa e
refratária relação que nós, cristãos, temos para com Deus. Creio que a via
relacional entre o homem e o Eterno se espraia – ou deveria fazê-lo – para além
de uma manifestação cultural, que é a religião. Aliás, religião, do
original religare, envolve um conceito de reconexão entre criatura
e Criador. Ser (re)ligado diariamente é uma característica bem sintomática de
vinculações entre seres que anseiam qualidade e permanência nas suas relações.
Com a fé não poderia ser diferente. É na crise, no marejar das lágrimas
silenciosas que inundam e afogam nossos solitários gritos de socorro e nas
controvérsias da racionalidade crédula que se constatam qual o preenchimento da
nossa alma.
É improvável que se tenha uma boa amizade, amor ou cumplicidade sem
algum tipo de divergência, de atrito ou frustração considerável. Por isso mesmo
que as profundezas de nossos questionamentos em relação à espiritualidade podem
e devem servir como um impulso para a emersão do mar da dúvida e independência
para caminharmos na terra firme do amor e absoluta Verdade.
Não obstante, ainda que andemos por águas desconhecidas e abissais,
sinônimo de temor, de insegurança e de medo, no lugar secreto, revela-se o
tesouro da existência: a espera com confiança – ou esperança, conforme alguns
preferem designá-la. Esperança de que, mesmo diante da quase sucumbência da
árdua submissão e obediência diante da peculiar rebeldia e autoconfiança que
nos inflige, a modernidade individualista virulenta e cética, o retorno
constante do nosso olhar para o rosto de Cristo, sem perder o contato com suas
mãos de cuidado, é a saída para a salvação de uma existência confusa.
Por isso mesmo, o profeta Oséias, no capítulo 11, retrata o amor de Deus
sob o viés de uma metáfora comparativa com o melindre e a misericórdia paterna,
orientado incondicionalmente pelo binômio da gratuidade e do compromisso. No
versículo 4, do mencionado profeta, Deus diz: “atraí-os com cordas humanas, com
laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas
queixadas, e lhes dei mantimento”. A demonstração textual é de graça abundante,
capaz de perdoar diante de fatos, de condutas que margeiam e, por vezes,
abraçam o absurdo moral.
Insistentemente tentamos procurar alternativas, atalhos e vias que nos
desviem das nossas origens, focamos a visão naquilo que mais ofusca do que
clarifica e esquecemos do supostamente inolvidável – a efemeridade da nossa
própria força. Isso provavelmente se sucede por guardarmos algum tipo de
revolta, rancor ou ferida não cicatrizada de um passado, mesmo não distante, de
modo a tornar a rotina embalada por ondas, cuja sensação é de abalo constante,
seja porque somos surpreendidos por notícias desagradáveis, ações inesperadas
daqueles que deveriam nos proteger ou defender ou, simplesmente, porque
nosso ônibus foi repentinamente subtraído, legítima ou
ilegitimamente.
A verdade é que as ondas sempre estarão lá para serem a dinâmica
rotativa da nossa história. Não há como fugir da fatal realidade de
sermos diariamente assaltados pela surpresa dos fatos sem o assombro de
atravessarmos as tormentas. Os pés falharão, os joelhos doerão, as ondas são
revoltas, as lembranças rondarão o coração e a consciência. Uns se socorrem no
existencialismo, outros se esgueiram na ciência, alguns tentam atracar no porto
do materialismo (ainda que histórico). Aos que, mesmo diante das reviravoltas,
traumas e dores das relações e, sabendo da fraqueza e fragilidade das decisões,
decidem investir na manutenção e convicção da fé, eis a Palavra de bálsamo: o
Pai está lá num gesto conciliador e perdoador. Só assim viveremos de forma
mais leve, sem os fantasmas e pesos dos ressentimentos e experimentaremos a
mais perfeita, plena e responsável irrepetebilidade da vida. A seguir uma
canção, do grupo australiano Hillsong United, que demonstra bem as palavras
ditas até aqui.
Ah,
antes que esqueça: o ônibus sempre pode ser recuperado ou substituído por algo
melhor. Paz!
E, levantando-se, foi
para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima
compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.
E o filho lhe disse:
Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu
filho.
Mas o pai disse aos
seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lho, e ponde-lhe um anel
na mão, e alparcas nos pés;
E trazei o bezerro
cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; Porque este meu filho estava morto,
e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se.
2 comentários:
Maremoto ou marolinha tamos junto, Lucena Filho! Adelante! ;)
Amei o texto!
Você tem um jeitinho singular e empolgante de escrever, não consegui parar de ler e quando acabou fiquei com gostinho de quero mais. Quando lançar livros nos avise ;) Parabéns moço!
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