terça-feira, 14 de outubro de 2014

O ônibus e o oceano

No segundo semestre de 2012, eu me deparei com uma situação constrangedora. Em rápidas palavras, o resumo da história: um pai sustentava a família com um ônibus e um dos filhos era o motorista. Em razão de um desentendimento entre ambos, o filho inconformado decidiu ajuizar uma ação trabalhista contra o pai. Reconheceu-se a relação empregatícia entre ambos, sendo o genitor vencido juridicamente, por ocasião da sentença e condenado ao pagamento das verbas decorrentes do contrato de trabalho. Como não houve pagamento espontâneo, o Juiz determinou que o ônibus fosse penhorado, avaliado e removido para o depósito judicial, no intuito de ser levado a leilão e a dívida paga.
Particularmente, senti-me muito desconfortável diante daquilo tudo, notadamente, porque sou um entusiasta e adepto da solução pacífica dos conflitos. Para me resguardar, fui escoltado pela Polícia e, chegando ao local, a reação era a esperada: o pai, abatido e decepcionado, não compreendia o porquê de tamanha injustiça, mas não hesitou em entregar prontamente o ônibus. Dias depois, ao chegar no trabalho, encontrei pai e filho sentados, celebrando uma conciliação e ouvi do pai um ‘eu o perdoo e não tenho mágoa’.
Esse caso nunca me saiu da memória por uma série de razões, jurídicas ou não. A finalidade aqui não é discutir o Direito, mas uma analogia teológica que pode ser extraída do caso, ou, dito de outra forma, a complexa expectativa e refratária relação que nós, cristãos, temos para com Deus. Creio que a via relacional entre o homem e o Eterno se espraia – ou deveria fazê-lo – para além de uma manifestação cultural, que é a religião. Aliás, religião, do original religare, envolve um conceito de reconexão entre criatura e Criador. Ser (re)ligado diariamente é uma característica bem sintomática de vinculações entre seres que anseiam qualidade e permanência nas suas relações. Com a fé não poderia ser diferente. É na crise, no marejar das lágrimas silenciosas que inundam e afogam nossos solitários gritos de socorro e nas controvérsias da racionalidade crédula que se constatam qual o preenchimento da nossa alma.
É improvável que se tenha uma boa amizade, amor ou cumplicidade sem algum tipo de divergência, de atrito ou frustração considerável. Por isso mesmo que as profundezas de nossos questionamentos em relação à espiritualidade podem e devem servir como um impulso para a emersão do mar da dúvida e independência para caminharmos na terra firme do amor e absoluta Verdade.
Não obstante, ainda que andemos por águas desconhecidas e abissais, sinônimo de temor, de insegurança e de medo, no lugar secreto, revela-se o tesouro da existência: a espera com confiança – ou esperança, conforme alguns preferem designá-la. Esperança de que, mesmo diante da quase sucumbência da árdua submissão e obediência diante da peculiar rebeldia e autoconfiança que nos inflige, a modernidade individualista virulenta e cética, o retorno constante do nosso olhar para o rosto de Cristo, sem perder o contato com suas mãos de cuidado, é a saída para a salvação de uma existência confusa.
Por isso mesmo, o profeta Oséias, no capítulo 11, retrata o amor de Deus sob o viés de uma metáfora comparativa com o melindre e a misericórdia paterna, orientado incondicionalmente pelo binômio da gratuidade e do compromisso. No versículo 4, do mencionado profeta, Deus diz: “atraí-os com cordas humanas, com laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e lhes dei mantimento”. A demonstração textual é de graça abundante, capaz de perdoar diante de fatos, de condutas que margeiam e, por vezes, abraçam o absurdo moral.
Insistentemente tentamos procurar alternativas, atalhos e vias que nos desviem das nossas origens, focamos a visão naquilo que mais ofusca do que clarifica e esquecemos do supostamente inolvidável – a efemeridade da nossa própria força. Isso provavelmente se sucede por guardarmos algum tipo de revolta, rancor ou ferida não cicatrizada de um passado, mesmo não distante, de modo a tornar a rotina embalada por ondas, cuja sensação é de abalo constante, seja porque somos surpreendidos por notícias desagradáveis, ações inesperadas daqueles que deveriam nos proteger ou defender ou, simplesmente, porque nosso ônibus foi repentinamente subtraído, legítima ou ilegitimamente.
A verdade é que as ondas sempre estarão lá para serem a dinâmica rotativa  da nossa história. Não há como fugir da fatal realidade de sermos diariamente assaltados pela surpresa dos fatos sem o assombro de atravessarmos as tormentas. Os pés falharão, os joelhos doerão, as ondas são revoltas, as lembranças rondarão o coração e a consciência. Uns se socorrem no existencialismo, outros se esgueiram na ciência, alguns tentam atracar no porto do materialismo (ainda que histórico). Aos que, mesmo diante das reviravoltas, traumas e dores das relações e, sabendo da fraqueza e fragilidade das decisões, decidem investir na manutenção e convicção da fé, eis a Palavra de bálsamo: o Pai está lá num gesto conciliador e perdoador. Só assim viveremos de forma mais leve, sem os fantasmas e pesos dos ressentimentos e experimentaremos a mais perfeita, plena e responsável irrepetebilidade da vida. A seguir uma canção, do grupo australiano Hillsong United, que demonstra bem as palavras ditas até aqui.
Ah, antes que esqueça: o ônibus sempre pode ser recuperado ou substituído por algo melhor. Paz!

E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.
E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho.
Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés;
E trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; Porque este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se.


2 comentários:

Marcela Moreno disse...

Maremoto ou marolinha tamos junto, Lucena Filho! Adelante! ;)

Anônimo disse...

Amei o texto!
Você tem um jeitinho singular e empolgante de escrever, não consegui parar de ler e quando acabou fiquei com gostinho de quero mais. Quando lançar livros nos avise ;) Parabéns moço!