sábado, 27 de dezembro de 2008

A normalidade da loucura

“Se você vier pro que der e vier comigo, eu lhe prometo o sol, se o hoje o sol sair” é o início de uma das poucas canções que tenho ouvido nos últimos dias – Dia Branco, por Geraldo Azevedo. Por certo, a melodia suave, encantadora, transmissora de paz, combinada com uma letra desafiadora origina tão bela composição. A sensação é de ouvir uma daquelas cantigas de ninar, onde o choro desesperado e a angústia que entorpece são abrandados por palavras ritmadas embaladas por uma leve esperança. Mas, muito embora mereça uma divagação própria, Dia Branco não é o único feito da quinzena em curso.

Também restaram energias para minha cinefilia, ao toque de um filme de Almodóvar (Tudo sobre minha mãe), alguns nacionais (Abril despedaçado, Cinema, urubus e aspirina), uma película colombiana, algumas crônicas do mestre Veríssimo, um poema clichê chamado ‘Metade’ – recitado por Oswaldo Montenegro - um zilhão de notificações e mandados judiciais a cumprir e conversas agradáveis com amigas próximas. Ah! E um louco! Isso mesmo. Um insano. Todavia, não um desses ordinários. Um daqueles bem intensos, ligado no 3. E o dito cujo é a razão principal de gastar uns minutinhos pensando essa semana.

Esclareço. Como é do conhecimento de todos, há aproximadamente um ano e meio sou um peregrino. Percorrendo as estradas potiguares, paraibanas e pernambucanas, tornei-me um graduado em viagens interestaduais, com especialização em terminais rodoviários.

De fato, estou perito quanto aos efeitos de comer pelas madrugadas, utilizar banheiros públicos, conhecer as melhores rotas, quilometragem, suportar companhias inconvenientes na poltrona ao lado, etc. Enfim, eu defendo que terminais são como shopping centers, resguardadas as devidas proporções, obviamente. Digo isso porque nesses locais há uma dinâmica própria de vida, pessoas que a qualquer hora do dia ou da noite estarão lá, uma espécie de comunidade própria, com inclusive hábitos peculiares. Ah! E outra coisa. As criaturas que lá vivem parecem adorar tamanha identificação com seus nichos nada ecológicos. Mesmo quando não há nada a se fazer, ficam zanzando para lá e para cá, resmungando, contando os causos das viagens, admirando os artesanatos das lojinhas de conveniência. Uma beleza!

Macacos me mordam! Quase esqueci do louco. Pois bem. Estava lá eu num desses terminais lendo o prefácio da minha última aquisição literária, muito bem acomodado numa Giroflex com as pernas cruzadas. Ops! Desculpem, tenho essas manias de sonhar acordado... Continuando... Sentado estava acentuando a escoliose que me persegue quando fui interpelado por um rapaz:

- O senhor quer uma oração?

- Quem? Eu?

- Sim, o senhor. Quer?

- Eu não!

- Então o senhor ora por mim?

Por um momento toda minha ética cristã quis aflorar, mas imediatamente tratei de lhe despedir. Ora, como alguém que se oferece tão solicitamente para orar por mim, no momento seguinte necessita urgentemente de uma prece? Até aí tudo bem.

Porém, não satisfeito aquele cristão continuou:

- Então vamos orar por George Bush?

Bem que o Saddam das Américas precisa de oração, especialmente no que tange à misericórdia divina, mas insisti:

- Não, meu amigo. São quatro da manhã e não quero orar por Bush.

- Certo. E que tal a família real da Inglaterra?

Agora “lascou” mesmo, pensei, já fechando o livro asperamente. Orar pela família real inglesa? Pedir o que? Agradecer? Clamar por sapiência para o príncipe Charles e saúde para a Rainha Elizabeth? Já estava quase cedendo àquele intercessor, quando minha indiferença carnal, ou melhor, bom senso falou mais alto e retruquei:

- Meu amigo, eu não vou orar por ninguém, entendeu?

- Tá bem, mas seu tivesse um tênis desse seu eu tava feito.

- Hein?!

E lá se foi aquela figura pitoresca desaparecendo no meio da noite, digo, quase dia, gritando e praguejando e andando em círculos. Ótimo. Passei quase cinco minutos dialogando com um doente mental apaixonado por chefes de estado e querendo distribuir orações por aí, com o fim de um dia comprar um pisante bonito. É mais ou menos parecido com a historinha do moleque que pediu uma bicicleta ao pai, e este respondeu que não daria, pois no quarto do filho já tinha uma janela e biscoitos de chocolate. Conexão zero!

Depois de algum tempo, fiquei pensando naquela atitude e reações. O intrigante é a relação entre normalidade e ação. Ainda me recordo que esse foi o tema principal do primeiro texto escrito espontaneamente por esse que vos fala em meados de 2005. Desconheço as razões pelas quais me sinto tão atraído pela análise da sanidade, especialmente quando os estudiosos no assunto afirmam que a linha entre o bom e o avariado é tênue. Isto implica no fato de que todos convivem com um eu potencialmente doente diariamente, motivo este que apavora milhares de pessoas com uma síndrome cujo maior sintoma é o medo de enlouquecer.

Então, retornando... Quando parei para pensar percebi que ser louco é sinal de extrema coragem. Não que alguém decida perder as estribeiras do equilíbrio, entretanto, um ser afetado mentalmente desenvolve características que todos os normais apreciam, mas muitos se acanham em aplicá-las, como a ousadia, coragem, sinceridade, destemor, indiferença quanto às inúmeras convenções sociais1. Por exemplo, invadir o ambiente de privacidade do próximo e importuná-lo a ponto de tentar convencê-lo a orar por Bush numa rodoviária às quatro da manhã é típico de pessoas audaciosas. E quem são os audaciosos? Os empreendedores, os humoristas e os oficiais de justiça do Rio de Janeiro!

No fim das contas, o dito louco tem aspectos até louváveis de gente considerada bem sucedida. O máximo que o ser orador poderia conseguir de mim era um ‘não’. E conseguiu. Nesse ponto, pergunta-se: e se no meu lugar fosse um sujeito mais sensível, polido, sentimental? Teria doado o par de tênis sem muito conflito emocional e aí a ‘loucura’ renderia bons frutos, passando de comportamento duvidável a criatividade brilhante. Aí está o grande mérito dos dementes: arriscar sem limites, mesmo que a impossibilidade dos resultados seja avantajada, tal qual prometer um sol a alguém se este sair.

Já os normais, por sua vez, se deixam abater pela enorme quantidade de regras de comportamento e se privam de falar, expor idéias, provocar discussões e até mesmo arriscar uma oportunidade quiçá única em suas vidas. Preferem ser reconhecidos como equilibrados e sãos a arriscarem no desconhecido e terem pelo menos um pouco de emoção e por que não resultados exitosos?

E deve ser por isso o ditado de médico e louco todo mundo tem um pouco. Aqueles que não têm, deveriam ter. Então, caro leitor, como um bom aplicador das reflexões, preciso ser exemplo: posso orar por você???

LUCENA FILHO

1Quando ventilo tais convenções é porque, desde os tempos remotos, os paradigmas de normalidade sempre subentendem outros paradoxais. Nas Escrituras mesmo está lá que a sabedoria divina é loucura aos olhos dos homens.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro amigo, primeiro gostaria de parabeniza-lo por ter um dom tão "interesante" seria a palavra ideal... sua criatividade e humor não deixam de esta presente nunca, enrriqueceram o texto... segundo, claro q podes orar por mim... todos somos loucos!!! E por fim uma dica... não se contraria louco viu?!!! kkkkkkk assim tenho aprendido da academia!!!

T.a.t.h.i.a.n.a L.u.c.e.n.a disse...

Olááá, menino da titia!!
Já disse o quanto gostei desse texto? Pois bem, gostei demais!
Você escreve muito bem e sabe prender o leitor desde as 1ª palavras à conclusão posterior à leitura. Sim, porque ficamos a pensar por alguns segundos em tudo isto pasmados com o conteúdo exposto.
Muito bom mesmo!!

=D

Humberto Lucena disse...

Jéssica, corri risco de morte, então?

Tathiana, volte sempre, muito obg pelas palavras...

Abraços

Carol Portella disse...

Humberto!!! Que maravilha de texto! O seu humor impressiona...
É, realmente essas andanças nos trás sempre boas recordações, boas estórias...
Um grande abraço. Fica com Deus.