sábado, 27 de dezembro de 2008

Domicianus Dominorum

Quando laborei lá pelas bandas do Sertão Central Pernambucano, carinhosamente chamado de Polígono da Maconha, conheci um rapazote. E ele era isso. Um rapazote. Puro e seco. No sentido mais profundo e também superficial da palavra. Até hoje procuro adjetivos apropriados para o dito cujo, mas as descrições fogem dele como o trancoso corre da cruz. Certo dia, quando o sol fervia no alto do meio dia, sentou-se o mencionado ao meu lado e, como um Forrest Gump das brenhas, começou a debulhar sua história. Por isso, para manter o máximo de fidelidade possível, reservo-me ao direito de apenas contar os fatos exatamente como sucedidos, deixando as conclusões para quem ler.

O nome da criatura era Domiciano Silva e Silva. Filho de Dolores Silva e Alciano Silva. E como no dia do casamento, o Padre disse ‘e serão ambos uma só carne’, nada mais justo do que juntar os nomes dos pais para chamar a primeira e única cria.

Dodó – alcunha afetiva outorgado pelos pais – até os vinte anos era o típico filho de camponês. Acomodado com tudo e todos e detentor de um estilo de vida bem previsível, Domiciano acordava cedinho, ordenhava as vacas, alimentava os ‘pôico’, como mesmo dizia ele, ajudava o pai na plantação, vendia leite no fim da tarde e fazia pão à noite. Diariamente as atividades se repetiam, sem nenhuma mudança significante. Até que um dia... Ah! Até que um dia a 'besta fera' chegou dentro de casa: a televisão.

Agonia e rebuliço mental maior não podiam esperar. O fato se deu num sábado, depois da feira, quando o novo telespectador chegou em casa com uma Cineral preta. Um filhote de incinerar com funeral.

- Paaiii, olhe só o que eu trouxe...

- Oxe, oxe, oxe. Que djabo é isso, menino?

- Homiiii, é uma televisão. Troquei ela em Fafá e voltei cinqüenta real – a vaca de estimação com tetas tamanho GGG e que nem sonhava Dodó a coincidência com a realidade.

- É o que? Trocou sua vaca por essa tranqueira aí? Se abestalhou foi?

- Eu não! A gente carece de um divertimento, né, mãe?, disse Dodó olhando desconfiado.

- E pra que tu quer uma televisão? Nem ler tu sabe, vociferou o pai.

- Pai, o senhor conversa muito miolo de pote. Deixei de coisa! Pra fazer ela ligar nem precisa saber ler. É só ver as pessoa tudo passando e as história delas se enrolando. Até rimou!

Pois bem. Foi a televisão chegando e a paz saindo. A quadradinha mexeu e remexeu com os neurônios do rapaz. Parecia um mundo recém-descoberto. Cada detalhe deveria ser absorvido e observado, sem perda de tempo. A partir daquele dia, talvez fosse apropriado classificar Domiciano como um rapaz, digamos... diferenciado para a região e circunstâncias de criação. A bendita da caixa preta que mostrava os quatro cantos do mundo de fora pra dentro e vice-versa alterou toda a rotina da família.

Falando em região, é merecido apontar que o protagonista da história e família nasceu e cresceu num sítio chamado Cuvico, distante umas dez léguas da cidade mais próxima, Bodó, que por sua vez ficava a todos os quilômetros da capital. Lá moravam umas trinta pessoas, dentre elas Januário, amigo e confidente de Dodó, tão matuto e isolado do mundo quanto este e que nem sonhava com o nível de conversa por vir nos próximos meses.

Voltando... De vigoroso e incansável trabalhador, Domiciano transmutou-se numa dondoca de barba, abusada e cheia de direitos. Só queria saber de apertar o Power e navegar nas imagens sedutoras e coloridas da telinha. Nada escapava. De desenho animado à sessão da tarde, passando pelas propagandas da Polishop e novelas mexicanas tudo era digerido sem critério. E nesse ritmo frenético, a mente virgem do sertanejo foi pouco a pouco colonizada sem choro nem vela, recebendo mensagem boa e também muita mazela.

As tarefas foram afetadas. Trabalho braçal até era feito, mas somente com muita insistência e lamúria do pai. Antes de qualquer atividade, o rapaz colocava uma bota velha e fazia alongamentos, corridas, exercícios. Ordenhar as vacas somente depois de lavar bem as mãos com sabonete Dove para não transmitir bactérias. Capinar? Nunca mais! Poderia ser acometido de LER (Lesão por Esforço Repetitivo). Alimentar e comer carne de porco? Pior ainda. Um dos documentários vistos por Domiciano afirmara que todos aqueles pertencentes à família Silva eram descendentes dos Barões do Café e estes, por sua vez, tinham ascendência judaica. E como todo judeu que se preze, carne suína era proibida! Fazer o próprio pão? Somente com Farinha Dona Benta. A aposta no jogo do bicho usual às sextas-feiras estava com os dias contados. Dali em diante somente telesena e lance mínimo nos programas de fofoca da tarde.

Dona Dolores só faltou endoidar com as novas regras de Dodó. Isso sem falar que a dispensa parecia mais um workshop de multinacionais de detergentes, biscoitos, cremes, etc. O dinheiro da aposentadoria do casal e os pequenos lucros desapareciam como relâmpagos no horizonte na hora de ir ao mercadinho da cidade. O filho do casal só queria tudo do bom e do melhor, conforme diziam as propagandas da televisão.

É certo que a nova aquisição tinha lá suas vantagens. Domiciano passou a falar mais corretamente, tudo bem que de vez em quando aqui acolá surgiam uns deslizes linguísticos, como um dia em que chegou pra mãe e disse que “a nível de conhecimento, ele iria estar querendo entrar numa escola”. Mas ele aprendeu isso lá na tevê com um filme sobre uma operadora de telemarquetingue. Também ocorria de misturar o vocabulário mais polido com o caipirês do berço. Para assimilar melhor os novos conhecimentos, Domiciano começou a caningar o pai:

- Pai, quero aprender a ler e escrever!

- Agora to aprumado, resmungou Alciano. Livro num enche bucho de ninguém. Pra quê tu inventou isso agora?

- Pra ficar mais sabido, oras. Quero poder ler as frases tudo que passa na televisão e entender um programa novo aí que tem dia de sábado.

- E que pograma é esse, Dodó?, perguntou a mãe.

- Açuletrano.

Já sem agüentar tantas perguntas e modismos dentro de casa (não que questionar fosse mau, mas quando se tratava de ter pai e mãe analfabetos tudo ficava mais complicado), o casal acatou o pedido do filho. E foi aí que Domiciano foi pra escola e a situação se agravou...

LUCENA FILHO

3 comentários:

Francisco Carlos disse...

Esse conto é ótimo, como tudo o que vc faz. Tô esperando a continuação.
Qdo o Ariano Suassuna se for, já tem um forte candidato à sucessão.

Humberto Lucena disse...

Que Ariano não leia isso...rss

Anônimo disse...

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- Norman